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Ocupação Novo Horizonte: a luta jurídico-política pelo Direito à moradia em Campos dos Goytacazes/RJ

Foto: Stefane Girassol


Em 2021, durante a crise sanitária provocada pela covid-19, 628 famílias ocuparam os conjuntos habitacionais Novo Horizonte I, Novo Horizonte II e Novo Horizonte III, no parque Aeroporto no Município de Campos dos Goytacazes, localizado na região norte fluminense.

Parte dessas famílias foram despejadas de suas casas por falta de pagamento de aluguel durante a pandemia, pois embora cadastradas no auxílio “aluguel social”, a Prefeitura atrasou oito meses do pagamento do auxílio em 2020. Outra parte das famílias aguardavam há anos pela entrega das chaves dos imóveis desses conjuntos habitacionais que deveriam ter sido entregues em 2019. Há, ainda, a presença de famílias em extrema vulnerabilidade social que tiveram suas condições econômicas agravadas pela crise sanitária, necessitando escolher entre comprar alimentos ou pagar o aluguel. Embora grande parcela dessas famílias preencham os requisitos para o recebimento de auxílios governamentais, muitas permanecem desassistidas pelo Estado.

O perfil socioeconômico das famílias desvela a desigualdade imposta pela pandemia na situação de trabalhadores e trabalhadoras. Mais de 80% das pessoas ameaçadas de despejo nessa comunidade são negras. 66% das famílias são chefiadas por mulheres, sendo 47% do total, famílias monoparentais. Quase 80% são trabalhadoras informais, autônomas e desempregadas que perderam sua principal fonte de renda com a pandemia. Muitas delas trabalhavam como manicures e diaristas e perderam sua principal fonte de renda com a pandemia.

Mais da metade das famílias encontram-se em estado de extrema pobreza com renda per capita inferior a R$ 89,00 e de pobreza com renda per capita entre R$ 89,00 e 178,00. Apesar desses dados, cerca de 34% dos moradores não possuem nenhum tipo de benefício social.

No que se refere à educação, quase 60% dos ocupantes afirmam possuir Ensino Fundamental Incompleto e nenhum deles concluiu o Ensino Superior. Em relação à ocupação dos entrevistados, quase 80% afirmaram que eram trabalhadores informais ou autônomos e apenas 2,6% afirmaram trabalhar com carteira assinada. Em relação à habitação, 55% dos entrevistados afirmaram que não possuíam casa e nem estavam inseridos em nenhum programa de habitação.




De acordo com a Fundação João Pinheiro, torna-se necessário analisar o déficit habitacional a partir do cotejo com gênero, visto que 60% do déficit habitacional brasileiro era composto por mulheres vivendo em condições de moradia inadequadas. Em 2019, a crise habitacional em todo o Brasil estava em 5,8 milhões de moradias.

A ocupação das famílias do conjunto habitacional Novo Horizonte acompanha os dados analisados pela Fundação João Pinheiro, a maioria das famílias é chefiada por mulheres negras, muitas desempregadas diante da pandemia. A extrema vulnerabilidade dessas famílias, quadro agravado pela pandemia, e a total ausência de política pública emergencial, levaram a essas famílias a se organizarem em busca pela garantia do direito à moradia.

Os dados da Fundação João Pinheiro apontam para uma tendência de aumento no déficit habitacional, uma das causas para esse crescimento seria o ônus excessivo com aluguel urbano, responsável pelo principal componente do déficit habitacional. No período da pandemia ocorreu o aumento do valor dos aluguéis. O IGP-M acumulou alta de 37,04% nos 12 meses até maio de 2021, foi o maior número desde maio de 1995. Antes da pandemia, o alto valor do aluguel urbano já respondia por mais da metade do déficit habitacional total, cenário que foi mais agravado com a pandemia.

Soma-se esse fato ao aumento do desemprego e o encarecimento do custo de vida como com a elevação do preço da cesta básica durante a pandemia. Segundo dados do IBGE, no primeiro trimestre de 2021 tivemos 1,6 milhão de desempregados no estado do Rio de Janeiro (316 mil a mais do que o registrado em março de 2020). A taxa de desemprego no estado ficou em 19,4%, cerca de 32% maior que a taxa geral do país (14,7%), ressalta-se que também foi recorde da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad). Dentre os desempregados destacam-se os dados elevados de mulheres negras.

Segundo o DIEESE, o valor da cesta básica no Rio de Janeiro é R$ 622,04. O estado possui a 4ª cesta básica mais cara do país. Atualmente, a insegurança alimentar atinge 116,8 milhões de pessoas no Brasil. 19 milhões de pessoas passam fome, segundo dados do final de 2020. Esse quadro promoveu o aumento do índice da miséria, que considera o alto desemprego com o aumento do custo de vida e a pandemia agravou as desigualdades sociais no Brasil.

As famílias da Ocupa Novo Horizonte fazem parte desse conjunto de trabalhadores, e majoritariamente, de trabalhadoras no Brasil, que perderam sua renda durante a pandemia e sentiram o impacto do encarecimento do custo de vida com aumento do valor da cesta básica e dos aluguéis. Num cenário de ausência de políticas públicas habitacionais, sejam permanentes ou emergenciais, encontram-se em grande situação de vulnerabilidade.

Apesar da previsão em normas nacionais e internacionais do direito de todos e todas à moradia adequada, inexistem no país políticas públicas em que a habitação seja considerada um bem social, uma forma de distribuição de riqueza às maiorias sociais, daqueles que vivem do seu trabalho, especialmente os mais pobres.

O conjunto Novo Horizonte retrata a precária política habitacional brasileira. Os imóveis foram construídos em um território distante da parte central da cidade, sem planejamento urbano que garantisse o acesso ao transporte, às unidades básicas de saúde e hospitais e às creches e escolas públicas. A precarização da implementação dessas políticas públicas contribui para o processo histórico de marginalização dessas pessoas, que permanecem sem acesso aos seus direitos fundamentais e distantes da atenção do Poder Público.

A lógica neoliberal que perpassa a política habitacional hegemonizada pelo capital financeiro, promove o uso crescente da terra e da moradia como um ativo integrado a um mercado financeiro globalizado, centrado na lógica da reprodução do capital, com a centralidade na geração de lucro e de riqueza para uma minoria.

Dentro dessa lógica vários marcos normativos têm sido produzidos, muitos oriundos de medidas provisórias editadas pelo executivo e convertidas em lei pelo poder legislativo, como o Programa Casa Verde Amarela, que é um programa de crédito habitacional que acabou com a faixa 1 do Minha Casa e Minha Vida, faixa destinada para quem tinha renda familiar até 1.800 reais, faixa de renda que mais precisa de programa habitacional a fundo perdido. Esse programa não prevê a responsabilidade estatal com a infraestrutura e promove a securitização.

Dentro da mesma lógica, milhares de imóveis públicos que descumprem a função social, ao invés de serem destinados à habitação por interesse social como reivindicado pelos movimentos populares de luta pela moradia, têm sido oferecidos a investidores e colocados para leilão.

Percebe-se a ausência de políticas públicas habitacionais por interesse social permanentes, assim como a ausência de políticas emergenciais no contexto da crise sanitária como a garantia efetiva de pagamento de aluguel social e a proibição de despejos na pandemia.

Dessa forma, o que se percebe é o agravamento das desigualdades sociais, raciais e de gênero na pandemia da covid-19. Diante do cenário de ausência de políticas habitacionais, de aumento do valor dos aluguéis e agravamento do déficit habitacional, vivenciamos processos de despejos em massa.

Durante a pandemia da Covid-19, ocorreu um aumento de 79% no número de ações com pedido de despejo no estado de São Paulo no primeiro trimestre de 2021. Segundo dados da Campanha Despejo Zero, foram 21.725 famílias despejadas durante a pandemia. O Rio de Janeiro figura como o estado onde ocorreram o maior número de despejos coletivos durante a pandemia, foram 4.862 famílias despejadas. Ocorreu o aumento de 485% de famílias ameaçadas de despejos coletivos em 2021, são mais de 91.305 famílias ameaçadas em todo o Brasil. As famílias da Ocupa Novo Horizonte estão entre essas famílias.

Entretanto, no contexto de pandemia da covid-19 a garantia do direito à moradia se torna ainda mais fundamental para a garantia da saúde coletiva e da vida, motivo pelo qual, vários órgãos nacionais e internacionais têm recomendado a suspensão dos despejos enquanto perdurarem os efeitos da crise sanitária.

Alguns estados da federação aprovaram projetos de lei suspendendo despejos durante a pandemia, como a Lei nº 9020/2020 aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), que determina a suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse, imissão na posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, enquanto medida temporária de prevenção ao contágio e de enfrentamento da propagação decorrente da pandemia de Covid-19.

Inicialmente essa lei teve sua constitucionalidade questionada no TJ/RJ pela Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro, mas na Reclamação nº 45.319/RJ movida pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro no Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministro Ricardo Lewandowski em decisão monocrática confirmou a constitucionalidade da referida lei estadual.

No Congresso Nacional foi aprovado o Projeto de Lei (PL) 827 de suspensão de despejos na pandemia. Inicialmente esse projeto de lei propunha a suspensão dos despejos em áreas urbanas e rurais, entretanto, no senado a pressão da bancada ruralista conseguiu excluir do PL a abrangência rural. O PL 827 foi vetado pelo Presidente da República e agora cabe ao Congresso Nacional a derrubada ou manutenção do veto.

O Conselho Nacional de Justiça, editou a Recomendação 90 de 2021 que orienta aos órgãos do Poder Judiciário que, enquanto perdurar a situação de pandemia de Covid-19, avaliem com especial cautela o deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, sobretudo nas hipóteses que envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica. Devendo ser levada em conta o acesso dessa população às vacinas ou a tratamentos disponíveis para o enfrentamento da Covid-19. Orienta de igual modo que sejam respeitadas as diretrizes estabelecidas na Resolução no 10, de 17 de outubro de 2018, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

A Resolução 10 de 2018 do CNDH, no artigo 1º, § 1º, reconhece que os despejos e deslocamentos forçados de pessoas vulneráveis implicam violações de direitos humanos e devem ser evitados, buscando-se sempre soluções alternativas. A resolução estabelece ainda que apenas em casos excepcionais deve ocorrer a remoção/despejo (art. 14) e que, nesses casos, o juiz da causa deve criar um plano de remoção, como estabelecido pelos artigos 14 e 15. Esse plano deve prever o reassentamento das famílias em local que assegure os direitos humanos”.

Foi proposta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), tendo por objeto a suspensão de todo e qualquer ato do Poder Público que tivesse como objetivo desocupações, despejos e reintegrações de posse, durante a pandemia de covid-19. Nessa ação foi deferida parcialmente a medida cautelar, suspendendo os despejos de áreas anteriores a 20 de março de 2020 e estabeleceu condicionantes às remoções de áreas ocupadas posteriormente a essa data, como forma de enfrentamento adequado à pandemia e à consecução do direito à saúde pública e à vida.

Entretanto, apesar de tais orientações, famílias continuam sendo removidas ou encontram-se ameaçadas de remoção. Pesquisas sobre a atuação do poder judiciário em conflitos possessórios urbanos e rurais no Brasil apontam que majoritariamente a magistratura brasileira apenas se centra no debate sobre o título de propriedade, não analisando a função social, o direito à moradia das famílias ocupantes e não utilizando métodos de mediação de conflito.

Recentemente foram realizadas algumas pesquisas sobre a atuação da magistratura nos conflitos possessórios durante a pandemia de Covid-19, tais pesquisas não identificaram uma mudança significativa na atuação da magistratura em razão da crise sanitária. Salvo alguns casos emblemáticos, a pandemia da covid-19 e a orientação dos órgãos de saúde da importância das políticas de isolamento social, não foram motivação para a suspensão de despejos na pandemia, até ao menos a já citada decisão cautelar do Ministro Barroso na ADPF 828. Dessa forma, também ocorreu no processo judicial relativo à Ocupa Novo Horizonte.

É importante ressaltar que o cenário da ocupação representa uma imagem simbólica que traduz a desigualdade social do Brasil: um território extenso, com 772 casas com estruturas físicas e aparências iguais e enfileiradas, cercadas por grades que trazem à memória um campo de concentração. Após o início da ocupação, a Construtora (autora do processo de reintegração) construiu cercas dentro da ocupação, entre as ruas, dificultando a passagem dos moradores. Em todo o local, há somente uma passagem para entrada e saída, o que obriga os moradores a andarem por uma grande distância para conseguirem entrar e sair da ocupação.


Foto: Stefane Girassol

P. R., 36 anos: “Está tendo muita dificuldade aqui, pra sobreviver com água pra carregar, a luz que não tem, e nem todo dia temos dinheiro pra comprar vela. Eu tenho dois filhos. Tenho problema de hérnia. Estou aqui desde o começo, de dia e de noite. Só saio daqui pra ver minha mãe que está com câncer. Eu tenho problema de pedra nos rins, tenho muita dor e tenho que carregar água. Hoje mesmo carreguei água, o carrinho estava quebrado. A gente tem que dar uma volta grande por causa das grades. Estamos presos que nem um bicho. Parece que estamos cercados num presídio. A gente não é bicho, não. Eles estão pensando que a gente é o quê? A gente é ser humano. Eles não estão passando a dor que estamos passando aqui. A gente queria uma solução. Eu sei que não sou só eu que estou passando por isso. Muita gente está aqui na luta. Ontem fui dormir chorando com dor nos rins. Meu marido está desempregado. Eu fico orando a Deus pra gente ganhar essa casa. Eu fazia faxina e agora não tem como mais”.

Cumpre destacar que o cercamento ilegal viola os direitos humanos das famílias que residem nos imóveis, considerando que dificulta o acesso a eventuais socorros médicos por meio de ambulâncias e carros. É necessário considerar que o cercamento no local representa a falta de acesso e restrição aos direitos mais comezinhos das famílias, ao contrário do que os muros, cercas e segurança privada representam para os moradores de classe média dos condomínios fechados, que contratam tais serviços para sua própria segurança. Isso traduz o retrato do paradoxo e desigualdade social em que vivemos.



Foto: Stefane Girassol


Apesar de o conjunto habitacional estar inteiramente pronto desde 2019, inclusive com as tubulações de água e fiações, as mais de 600 famílias permanecem há mais de quatro meses sem fornecimento de água e energia elétrica. O único acesso à água no local, é por meio de uma torneira improvisada instalada pelos movimentos sociais de direitos humanos, e o único acesso à luz é por meio de aparelhos de luz de emergência doados pelos militantes. Tal realidade agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade dessas famílias.

É válido ressaltar que não é necessário que tenha o direito de propriedade demonstrado para serem assegurados tais direitos essenciais. Não obstante, a decisão de manutenção da posse concedida ao decorrer do processo, permite que haja o acesso às redes básicas de serviços como aspecto da moradia digna adequada.

A privação do acesso aos serviços essenciais de fornecimento de água e energia elétrica afronta os direitos humanos destas famílias, tendo em vista que representa um risco à vida. A falta de energia elétrica nos imóveis faz com que as famílias tenham que colocar velas para clarear as casas à noite, o que representa risco de incêndio e acidentes. Da mesma forma, a falta de água impossibilita o cumprimento dos protocolos de higiene e biossegurança no combate ao coronavírus, como lavar as mãos e tomar banho, bem como atividades básicas, como cozinhar e realizar refeições.

F. S., 24 anos: “Tenho um filho de um ano e onze meses e cuido dele sozinha. As condições na ocupação sem luz e sem água estão muito complicadas. Não podemos ter uma higienização adequada, ainda mais com esse vírus que temos que ter uma higienização. Com esse tempo frio, por estar dormindo no chão, meu filho atacou a bronquite. Se caso eu precisar fazer uma nebulização nele, não posso, porque não tem luz na casa. Está bem complicada nossa situação”.

Ora, não é possível garantir segurança, vida sadia, num meio ambiente equilibrado, tudo a respeitar a dignidade humana, se os serviços públicos essenciais urgentes não forem contínuos. Se os prestadores dos serviços públicos cortarem o fornecimento de energia elétrica, bem como água e esgoto, além das perdas imediatas, os direitos básicos daquelas pessoas passam a não ser supridos. Com isso, surge um problema de saúde pública, sobretudo no contexto pandêmico em que vivemos. O corte do serviço gera uma violação direta ao direito do cidadão e indiretamente à própria sociedade.

L. C. C., 23 anos: Tenho duas crianças pequenas e minha dificuldade maior é água e luz, porque criança traz dificuldades e sem água e luz é muito difícil viver. Temos que carregar água, e muitas vezes não temos trocado nem pra comprar uma vela de cinquenta centavos, nem um pão para os nossos filhos comerem. Muita gente não entende isso. Nossa realidade aqui dentro é trancado que nem um bicho. Nós somos seres humanos, já tivemos casa, mas hoje não temos mais. Eu tive que vender o pouco que tinha pra sobreviver com meus filhos.

Há que se dizer que o perfil socioeconômico das famílias demonstra suas vulnerabilidades, que de acordo com pesquisa realizada e publicada na revista científica The Lancet Respiratory Medicine, o padrão de gravidade da doença, com evento morte, se dá nas regiões empobrecidas onde se encontram as populações mais vulneráveis.

A. S. S., 42 anos: “Tenho um filho com autismo infantil (CID 10 F84). Eu era casada com o pai do meu filho, e desde a descoberta do autismo, ele nunca aceitou o filho. Por questões machistas e de raiva, ele fez os avós nos tirar da casa, porque pedi o divórcio por não aceitar o descaso dele com o nosso filho. Com isso tudo, eu não tinha onde morar. Foi então que a minha irmã me permitiu ficar na casa dela. Eu já tinha feito a inscrição no CSU para as casas do Novo Horizonte. Entreguei todas as documentações na data prevista, conforme foi solicitado. Participei de todas as etapas e meu nome foi sorteado em 2019, mas mesmo assim fiquei aguardando. Sempre tinha uma desculpa por não ter previsão para a entrega das casas. É muito ruim você viver na casa das pessoas de favor, mesmo sendo da família. A casa tinha 10 pessoas morando em dois quartos. Quando eu fiquei sabendo da invasão, eu fui ocupar uma casa pra mim, porque se a Caixa Econômica não me deu uma posição, e eu precisando de ter uma casa, eu ocupei. Sendo que está sendo muito difícil ficar numa casa sem luz, principalmente por conta do meu filho ser deficiente. Ele me pede para acender a luz e é muito complexo ele entender as coisas. É muito triste ele ver a mãe dele carregando água pelas ruas e dormir no chão no frio. Chegamos a ficar doente por conta disso. É muito triste a gente não ter o que garante os nossos direitos de moradia digna, de uma água, de uma luz. Estou lá porque necessito ter uma casa digna e dar uma vida digna para o meu filho, já que ele foi abandonado pelo próprio pai”.

Outro fato preocupante é a falta de acesso à alimentação básica. A maioria das famílias ocupantes encontram-se em situação de insegurança alimentar. Os movimentos sociais instalaram uma cozinha comunitária em um dos imóveis, que se sustenta por meio de doações da sociedade civil organizada, onde são feitas as refeições diárias para a população. Porém, centenas de famílias permanecem sem saber quando serão suas próximas refeições:

I. F. C., 55 anos: “Na Novo Horizonte mora eu e meu esposo. A dificuldade nossa aqui é muito grande. Estamos sem água, sem luz. Precisamos de alimentação e ajuda das pessoas. Precisamos da retirada das grades porque nós estamos presos aqui dentro, sem direito de ir e vir. Nós não temos liberdade pra nada. Estamos na escuridão. Muitos estão cozinhando na lenha. Eu por enquanto estou me mantendo com a alimentação da cozinha (solidária). Porque eu não posso trazer fogão nem botijão pra casa. Estou passando por muita dificuldade e já perdi 11,5 kg. Eu tenho problema de saúde e não posso estar pegando peso, por isso as grades estão dificultando muito a vida da gente. Não temos direito de ir pra lugar nenhum porque as grades não deixam. Se a gente abre um buraco eles vão e fecham outro. Temos que dar uma volta muito grande pra andar. Eles estão mantendo a gente praticamente em cárcere privado”.


As pessoas que ocupam o conjunto habitacional Novo Horizonte são desumanizadas e referidas como “invasoras” e “baderneiras” pela mídia local e pelos representantes do Poder Público Municipal, uma maneira de criminalizar a luta pelo direito à moradia e as pessoas em vulnerabilidade social. Apesar de serem marginalizadas pela sociedade, essas famílias resistem e lutam diariamente para terem acesso aos seus direitos fundamentais, que, apesar de serem garantidos constitucionalmente, não são percebidos na prática.

A. R., 31 anos: “Eu estou desempregada e sem recursos nenhum. Só com bolsa-família, tendo que ser mãe e pai, homem e mulher da casa e resolver tudo, com uma criança de menor para cuidar e educar, tentar dar o melhor para o futuro dele. Foi aonde eu fui me encontrar nessas casinhas. Se eu não tivesse essas casinhas, eu seria mais uma família morando debaixo da ponte. É triste, eu não nego. Tem dias que a ONG consegue doações de alimentos para nós, mas tem dias que não tem como, e é onde que a gente tem que dar um jeito de dormir para segurar a fome e ver se o sono alimenta”.

Faz-se necessário enxergar essas pessoas para além dos números e dados. São diversos indivíduos, trabalhadoras e trabalhadores impactados pela crise socioeconômica, que se agravou com a pandemia, principalmente na ausência de uma política pública concreta para a falta de moradia.

É possível perceber que o Poder Judiciário, ainda estruturado em conceitos e atuações conservadoras, desconsidera as relações de desigualdades sociais presentes na sociedade, ao limitar-se à aplicabilidade das normas de forma meramente positivista. Entre a dicotomia do direito à propriedade e o direito à moradia, faz-se necessário o questionamento: a quem - e para quê - o direito serve? Direito este que se baseia no conceito de justiça, mas contribui para a perpetuação da precariedade da vida dos mais vulneráveis. Se, de um lado, é discutido o direito à propriedade, de outro, é analisado o direito fundamental à vida, que perpassa o direito à moradia digna e adequada, sobretudo em um contexto pandêmico, em que casa representa proteção.

A ideia finalística do direito civil baseado no capitalismo, que promove, sobretudo, a proteção de bens materiais e da propriedade privada, com intuito de sobrepor a discussão da propriedade ao direito fundamental à moradia e à vida digna e segura, retrata o processo de financeirização da moradia e a transformação da casa em mercadoria, como sua transmutação de bem de uso em capital fixo. Implícito a esse mecanismo, está a construção da hegemonia, tanto ideológica quanto prática, de um modelo de política pública de habitação - com lastro neoliberal - fundamentado na promoção do mercado e do crédito habitacional para a aquisição da casa própria.

A pandemia da covid-19 escancarou as desigualdades sociais, intensificando a falta de acesso aos direitos fundamentais da população. O retrato das ocupações urbanas no Brasil representa o abismo social entre o Estado e a população. As ocupações têm cor, gênero e classe social: majoritariamente compostas por mulheres, mães solo, negras e negros, marginalizados historicamente por um Estado elitista que se mantém inacessível ao povo.

Neste sentido, é necessário compreender essas pessoas como protagonistas da construção de políticas públicas habitacionais, pautadas nas reais necessidades dessa população, e não como agentes à parte dessa discussão, a fim de desconstruir a concepção colonizadora de promoção de políticas públicas sem ouvir os seus beneficiários diretos, que têm uma relação de maior proximidade com as questões territoriais e suas derivações que perpassam a discussão dessas políticas públicas. Considerando isso, os movimentos sociais se colocam, além de interlocutores, como uma atuação forte e constante de advocacy dirigida ao Estado, que tem como foco principal o acesso e garantia dos direitos humanos.

Assim, a articulação entre os movimentos sociais e as instituições jurídicas de defesa dos direitos humanos, como a Defensoria Pública da União, mostra-se de suma importância para a garantia do acesso à justiça e a defesa dos direitos fundamentais da população mais vulnerável. Tal construção coletiva permite a colaboração para um direito mais humano, que atue como mecanismo de luta por uma sociedade mais justa e sem desigualdades, que vai além dos muros da Academia e dos Tribunais.



Rafaelly Galossi



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Pesquisa de campo

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Relatório de transcrição de entrevistas das famílias ocupantes, realizada na Ocupação Novo Horizonte, em 22 de junho de 2021.

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