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A mística feminina: um mal sem nome



É possível observar a partir da existência da mulher um paradigma: o ser mulher. Esta situação paradigmática e intencional é beneficiada pela imposição social em que vive oprimida. Desta forma, ao viver a opressão, aprende a oprimir, e sua história se observará em sua descendência e perpetuação.

A naturalização da desigualdade entre os gêneros ganha respaldo pelo próprio dominado, de tal forma que as mulheres reproduzem a estrutura desigual constituída pelos dominantes, contribuindo, assim, para o ciclo de dominação masculina:


Quando os dominados aplicam àquilo que os denomina esquemas que são produto da dominação ou, em outros temos, quando seus pensamentos e suas percepções estão estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão. Porém, por mais exata que seja a correspondência entre as realidades, ou os processos o mundo natural, e os princípios de visão e de divisão que lhe são aplicados, há sempre um lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo e particularmente das realidades sexuais. (BOURDIEU, 1998, p. 22).


A visão androcêntrica é assim continuamente legitimada pelas próprias práticas que ela determina: pelo fato de suas disposições resultarem da incorporação do preconceito desfavorável contra o feminino, instituído na ordem das coisas, as mulheres não podem senão confirmar seguidamente tal preconceito, como preconiza Bourdieu (1998, p. 45):


A dominação masculina encontra, assim, reunida todas as condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus, moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes.


Destarte, segundo a análise de Bourdieu, as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se veem envolvidas esquemas de pensamentos que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica.


A mulher não deseja a realização particular do seu ser, mas de toda forma busca a realização de sua história paradigmática, construída pela cultura a que pertence, de forma a perpetuar, inconscientemente, sua própria opressão. Na verdade, homens e mulheres dividem o mesmo espaço situacional: profissão, classe social, ideais políticos e econômicos, associações, etc., não podendo se explicar as segregações apenas pela moral ou valor econômico. (VIANA, 2013).


De acordo com Viana, não há como proceder à separação entre homens e mulheres, que buscam entre si a satisfação original de seus desejos e se casam, formando as células fundamentais da sociedade, que são as famílias. Nesse sentido, Beauvoir afirma que:


Ela (a mulher) deve assegurar a monótona repetição da vida em sua contingência e facticidade: é natural que ela própria repita, recomece, sem jamais inventar, que o tempo lhe pareça girar sobre si mesmo sem conduzir a nenhum lugar; ocupa-se sem nunca fazer nada; aliena-se, pois no que tem; essa dependência em relação às coisas, consequências da dependência em relação aos homens, explica sua prudente economia, sua avareza. Sua vida não é mais dirigida para fins; absorve-se em produzir ou manter coisas que nunca passam de meios: alimento, roupas, residência; são intermediários inessenciais entre a vida animal e a livre existência; o único valor ligado ao meio inessencial é a utilidade; é no nível do útil que vive a dona de casa e ela só se vangloria de ser útil a seus parentes (BEAUVOIR, 1949b, p.430).


Assim, é possível perceber que a vida da mulher em certas situações não é dirigida para fins próprios. Para uma dona-de-casa, por exemplo, seu papel está submetido ao fato de servir e ser útil aos seus familiares, e não de compreender e construir seu próprio eu e satisfazer seus anseios pessoais. “Nesta perspectiva, a mulher se torna um ser para outrem, alienada na condição de repetição da espécie ou de manutenção da vida, sem a possibilidade real de transcendência inerente a todo sujeito livre”. (VIANA, 2013, p. 4).


Friedan, em sua obra A Mística Feminina (1963), abordou essa questão, referindo-se ao tema como um mal sem nome que assola as mulheres da época pós-guerra. A Mística Feminina, segundo Friedan (1963), corresponde a uma corrente de pensamento que reduz a mulher somente a seu papel biológico e matrimonial, tirando dela a chance de ter todo o seu potencial explorado. Ela aborda o “mal sem nome”, que é um certo sentimento que assola as jovens mães americanas do período pós-guerra da história americana, conhecido como o período da segunda onda feminista, mas que ainda hoje é sentido em todo mundo. É o sentimento de que algo está errado, que algo nessa vida perfeita de esposa e mãe está faltando ainda que não se saiba bem o quê. (FRIEDAN, 1963).


Para a autora, logo após a revolução feminista do início do século XX houve uma grande onda que tentou trazer as mulheres para o ambiente doméstico, dessa vez concedendo-lhe ares de “um grande feito”. Ora, criar um ambiente saudável para seus maridos e filhos, alimentá-los, vesti-los, lhe proporcionar uma base para que estes, estes sim que nasceram homens possam fazer grandes coisas no mundo, poderia ser algo prejudicial, ou, ainda menor como vocação? A mística feminina diz que esse é o papel da mulher e que ela deveria se sentir orgulhosa de fazer parte desse processo, ainda que escondida nos bastidores, mas a autora diz que não, que a mulher pode ser mais, pode participar do mundo, tomar decisões, ter uma carreira, e se dedicar a transformar a sociedade. (FRIEDAN, 1963).


Camuflado por revistas femininas na década de 50, o "mal sem nome" acabou por chegar à imprensa no início da década de 60, em veículos como New York Times, Newsweek, Time, Good Housekeeping e a CBS. Artigos e reportagens abordavam a infelicidade feminina, buscando razões superficiais para explicá-la. A incompetência de profissionais que davam manutenção a aparelhos eletrodomésticos, o excesso de reuniões de pais e mestres e até o questionamento sobre a educação elevada destinada a donas de casa foram apontados como causas do problema. (FRIEDAN, 1963).


Friedan questionou esses fatores e apontou a mística feminina como causa maior de todos esses problemas que precisariam ser encarados de maneira séria pela sociedade:


O problema não pode ser compreendido nos termos geralmente aceitos pelos cientistas ao estudarem a mulher, pelos médicos ao tratarem dela, pelos conselheiros que as orientam e os escritores que escrevem a seu respeito. A mulher que sofre deste mal, e em cujo íntimo fervilha a insatisfação, passou a vida inteira procurando realizar seu papel feminino. Não seguiu uma carreira (embora as que o façam talvez tenham outros problemas); sua maior ambição era casar e ter filhos. Para as mais velhas, produtos da classe média, nenhum outro sonho seria possível. As de quarenta ou cinqüenta anos, que quando jovens haviam feito outros planos e a eles renunciado, atiraram-se alegremente na vida de donas-de-casa. Para as mais moças, que deixaram o ginásio ou a faculdade para casar, ou passar algum tempo num emprego sem interesse, este era o único caminho. Eram todas muito "femininas" na acepção comum da palavra, e ainda assim sofriam do mal. (FRIEDAN, 1963, p. 25).


As mulheres viam esses problemas, quase sempre, como falhas no seu matrimônio. Que espécie de mulher se era, se não sentia uma mística realização encerando o chão da cozinha? Provocava Friedan. Não se ajustar ao papel de feminilidade, ao papel de mãe e esposa, era o referido "mal sem nome", afinal.


De acordo com a referida autora, este mal sem nome que assolou diversas mulheres da década de 60, trouxe à tona as insatisfações destas mulheres, por viverem em prol de suas casas, maridos e filhos, sem quaisquer ambições e perspectivas futuras pessoais. Esta problemática jamais foi refletida antes por algumas mulheres, seja por estarem inseridas no contexto de dominação masculina, como sujeitos dominados que ratificam sua dominação, ou por receio de sua própria libertação.


Os questionamentos nascidos a partir dessas reflexões, fizeram com que algumas mulheres despertassem para suas realidades, como sujeitos detentores de vontade e protagonistas de suas próprias histórias. Mas, ao romper uma cultura de dominação, imposta e construída histórica e socialmente, de forma estratégica e intencional pelos dominantes, a reação de quem sempre deteve o poder sobre os corpos e vidas de seus dominados, seria de interromper, a todo custo, esta revolução anunciada. Para isso, usar a força física, muitas vezes, foi e continua sendo até os dias atuais uma estratégia para impor e ratificar as posições pré-estabelecidas de dominante e dominado. Mulheres que ousavam expressar suas próprias vontades e buscar seus crescimentos pessoais, como no trabalho, estudo ou desejos individuais, eram violentadas por seus maridos e companheiros. A ideia trazida com o pacto social oculto da dominação masculina, ratificava o poder dos homens sobre os corpos femininos. Assim, a partir do despertar das mulheres, nasce a Segunda Onda Feminista, em busca da liberdade de seus corpos e mentes e igualdade política e social de seus direitos.



Rafaelly Galossi



REFERÊNCIAS


BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 5. Edição. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007.


DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Vol. 1. Tradução de Sérgio Milliet. Edição. L’Invitée. Paris, Gallimard, 1943.


FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina. Tradução de Áurea B. Weissenberg. Grandview, Nova York, 1963.


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